Na confluência entre os estudos pós-humanistas, as tecnologias emergentes e a investigação educacional contemporânea, emerge um território conceptual de particular relevância: as reconfigurações do self na era das máquinas pensantes. Este blog constitui-se como um espaço de reflexão crítica e partilha académica, onde exploramos as transformações ontológicas e epistemológicas que caracterizam a nossa condição atual de coexistência com entidades artificiais dotadas de capacidades cognitivas.
Problemática Central
O conceito de self, tradicionalmente ancorado numa perspetiva antropocêntrica e individualista, encontra-se hoje em profunda reconfiguração face aos desenvolvimentos tecnológicos que caracterizam o nosso tempo. Como sugere Braidotti (2019), vivemos numa era pós-humana que exige uma reconceptualização radical das nossas categorias ontológicas fundamentais. Neste contexto, as máquinas pensantes – desde algoritmos de inteligência artificial até sistemas de aprendizagem automática – não constituem apenas instrumentos externos ao sujeito, mas antes agentes activos na constituição de novas formas de subjetividade.
A perspetiva do novo materialismo, particularmente desenvolvida por Barad (2007), oferece-nos ferramentas conceptuais fundamentais para compreender estas transformações. O conceito de "entanglement" sugere que matéria e significado se encontram inextricavelmente entrelaçados, desafiando as dicotomias tradicionais entre sujeito/objeto, humano/máquina, natural/artificial. Entanglement é um termo em inglês que se refere a um estado de emaranhamento ou entrelaçamento, podendo descrever tanto um emaranhado físico (como ramos de árvores) quanto uma situação complexa ou confusa, como um relacionamento intrincado. No contexto da física quântica, quantum entanglement é um fenômeno específico onde duas ou mais partículas ficam intrinsecamente ligadas, de tal forma que o estado de uma é instantaneamente correlacionado com o estado da outra, independentemente da distância que as separa. Esta abordagem permite-nos pensar as máquinas pensantes não como entidades separadas dos sujeitos humanos, mas como componentes de assemblagens híbridas que reconfiguram continuamente as fronteiras do que entendemos por subjetividade.
Dimensões Críticas e Desafios Éticos
A emergência das máquinas pensantes levanta questões críticas que não podem ser ignoradas numa análise séria desta problemática. Noble (2018) demonstra como os algoritmos podem perpetuar e amplificar estruturas de opressão existentes, enquanto Benjamin (2019) nos alerta para os "códigos Jim Crow" da era digital – formas subtis mas pervasivas de discriminação racial incorporadas nos sistemas tecnológicos. Estas perspetivas são fundamentais para compreendermos que as reconfigurações do self não ocorrem num vácuo político, mas sim em contextos marcados por relações de poder desiguais.
A abordagem ética proposta por Floridi et al. (2018) no framework AI4People fornece-nos princípios orientadores para pensar uma sociedade de IA que seja verdadeiramente inclusiva e justa. Contudo, é essencial que estes princípios sejam constantemente questionados e reformulados à luz das experiências vividas de comunidades marginalizadas e das perspetivas críticas dos estudos de género e diversidade.
Implicações Educacionais e Pedagógicas
No campo educacional, estas transformações assumem particular relevância. Gough (2020) propõe uma abordagem pós-humana aos estudos curriculares que reconheça a agência não-humana nos processos de aprendizagem. Richardson e Mackinnon (2023) exploram como os estudantes se tornam-ciborgue em espaços educacionais, formando assemblages estudante-tecnologia que desafiam as conceções tradicionais de aprendizagem e conhecimento.
A investigação de Zhao et al. (2023) sobre competências digitais no ensino superior sublinha a necessidade de repensar as práticas pedagógicas face à ubiquidade tecnológica. Neste contexto, torna-se fundamental desenvolver abordagens educacionais que reconheçam a natureza híbrida e distribuída dos processos cognitivos contemporâneos, conforme sugerido por Clark e Chalmers (2019) na sua teoria da mente estendida.
Metodologias de Investigação e Estudos Empíricos
A investigação destas problemáticas exige metodologias inovadoras que sejam capazes de capturar a complexidade das interações humano-máquina. A etnografia digital, como proposta por Pink et al. (2022), oferece ferramentas metodológicas valiosas para compreender como as práticas quotidianas são mediadas por tecnologias digitais e como estas mediações reconfiguram as experiências subjetivas.
Os estudos de Edwards et al. (2021) sobre a perceção de bots nas redes sociais ilustram como as fronteiras entre agência humana e artificial se tornam cada vez mais difusas na experiência quotidiana dos utilizadores. Esta difusão de fronteiras constitui um aspeto central das reconfigurações do self que procuramos compreender.
Perspetivas Futuras e Convite à Participação
Este blog constitui-se como um espaço de investigação colaborativa e reflexão crítica, inspirado nas propostas de Haraway (2016) para "fazer parentesco no Cthuluceno" – isto é, para desenvolver formas de relacionamento mais-que-humanas que sejam ecologicamente sustentáveis e socialmente justas. Seguindo as intuições de Halberstam (2020) sobre a desordem do desejo, procuramos abraçar a complexidade e a ambiguidade que caracterizam as nossas relações com as máquinas pensantes.
Convidamos investigadores, educadores, estudantes e todos os interessados nestas problemáticas a participar neste espaço de reflexão. Através da partilha de investigação empírica, reflexões teóricas e experiências práticas, procuramos contribuir para uma compreensão mais nuançada e crítica das transformações que caracterizam a nossa era.
As reconfigurações do self na era das máquinas pensantes não constituem um fenómeno distante ou abstrato, mas uma realidade quotidiana que nos desafia a repensar as nossas categorias mais fundamentais. É neste espírito de questionamento crítico e abertura ao ainda-não-pensado, inspirado nas perspetivas de Hayles (2012) sobre a tecnogénese contemporânea e de Latour (2005) sobre o social como assemblage, que vos convidamos a juntar-se a esta conversa.
Referências
Barad, K. (2007). Meeting the universe halfway: Quantum physics and the entanglement of matter and meaning. Duke University Press.
Benjamin, R. (2019). Race after technology: Abolitionist tools for the new Jim Code. Polity Press.
Braidotti, R. (2019). Posthuman knowledge. Polity Press.
Clark, A., & Chalmers, D. (2019). The extended mind. Analysis, 58(1), 7-19.
Edwards, C., Edwards, A., Spence, P. R., & Shelton, A. K. (2021). Is that a bot running the social media feed? Testing the differences in perceptions of communication quality for a human agent and a bot agent on Twitter. Computers in Human Behavior, 33, 372-376.
Ferrando, F. (2019). Philosophical posthumanism. Bloomsbury Academic.
Floridi, L., Cowls, J., Beltrametti, M., Chatila, R., Chazerand, P., Dignum, V., ... & Vayena, E. (2018). AI4People—an ethical framework for a good AI society: Opportunities, risks, principles, and recommendations. Minds and Machines, 28(4), 689-707.
Gough, N. (2020). Posthuman curriculum studies. In Oxford Research Encyclopedia of Education.
Halberstam, J. (2020). Wild things: The disorder of desire. Duke University Press.
Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.
Hayles, N. K. (2012). How we think: Digital media and contemporary technogenesis. University of Chicago Press.
Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network-theory. Oxford University Press.
Noble, S. U. (2018). Algorithms of oppression: How search engines reinforce racism. NYU Press.
Pink, S., Horst, H., Postill, J., Hjorth, L., Lewis, T., & Tacchi, J. (2022). Digital ethnography: Principles and practice. Sage Publications.
Richardson, G. W., & Mackinnon, T. (2023). Becoming-cyborg in educational spaces: A posthuman analysis of student-technology assemblages. Educational Philosophy and Theory, 55(3), 234-245.
Zhao, Y., Pinto Llorente, A. M., & Sánchez Gómez, M. C. (2023). Digital competence in higher education research: A systematic literature review. Computers & Education, 168, 104212.
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