Vivemos um momento histórico em que a inteligência artificial deixa de ser apenas uma ferramenta e se converte num espelho e co-autor metafórico dos nossos próprios processos de criação, reflexão e aprendizagem. Esta transição inaugura um novo regime epistemológico e identitário: o da co-autoria humano-máquina. Mais do que automatizar tarefas, a IA participa na produção de sentido, questionando as fronteiras entre sujeito e objeto, entre humano e máquina, entre autor e mediador.
Do ponto de vista pedagógico, abre-se um campo de tensão: se a aprendizagem sempre implicou mediação, agora essa mediação é partilhada com agentes não-humanos capazes de dialogar, argumentar e até propor alternativas criativas. Surge a necessidade de repensar os modelos educativos, não apenas para integrar a tecnologia, mas para compreender como esta reconfigura a agência e a autoria do sujeito aprendente (Siemens, 2020; Downes, 2020).
Do ponto de vista epistemológico, este cenário convoca os estudos ciborgues (Haraway, 1991), que há décadas problematizam os limites do humano e do tecnológico. O "ciborgue pedagógico" já não é ficção científica, mas metáfora crítica para pensar uma aprendizagem híbrida, pós-humana e interdependente, onde o conhecimento é coconstruído em redes que atravessam corpos, linguagens e algoritmos.
Do ponto de vista identitário, as implicações são profundas. O self, historicamente construído como unidade autónoma, passa a ser configurado como um processo relacional e distribuído (Turkle, 2011). Aqui, os contributos dos estudos de género e diversidade oferecem pistas fundamentais: tal como as identidades de género questionam a normatividade e a fixidez, também o self digital e co-autoral se revela plural, fluido e inacabado. A metáfora do espelho deixa de ser apenas reflexiva — torna-se dialógica, revelando múltiplos "eus possíveis" mediados por inteligências não-humanas.
O estatuto da co-autoria humano-máquina hoje
Apesar de toda esta riqueza conceptual, é importante reconhecer que, no campo jurídico, ético e científico, a noção de co-autoria humano-máquina não é hoje reconhecida.
Responsabilidade e agência: A Comissão Europeia estabelece, nas suas diretrizes recentes para investigação e inovação, que "os sistemas de IA não são autores nem coautores". A autoria implica agência e responsabilidade, que recaem apenas em humanos (European Commission, 2025).
Normas editoriais: O International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) explicita que a IA não deve ser listada como autor ou coautor, sendo apenas aceitável declarar o seu uso na metodologia ou nos agradecimentos (ICMJE, 2023).
Ética em publicação científica: A COPE (Committee on Publication Ethics) reforça que a responsabilidade plena é dos autores humanos, mesmo quando recorrem a IA em fases de escrita ou análise (COPE, 2023).
Direito de autor: O U.S. Copyright Office, no relatório de 2025, reitera que a proteção por copyright exige criatividade humana substancial. Contribuições puramente algorítmicas não geram autoria legal (U.S. Copyright Office, 2025).
Assim, embora seja instigante falar em "co-autoria" humano-máquina do ponto de vista metafórico e pedagógico, do ponto de vista normativo e jurídico trata-se de uma categoria não reconhecida. A IA permanece, oficialmente, uma ferramenta assistiva cujo uso deve ser declarado com transparência, mas que não detém nem agência, nem criatividade legalmente protegida, nem responsabilidade ética.
Para lá da controvérsia: o Pós-humano e o Ciborgue Educativo
Como resolver esta aparente contradição? Aqui entram as perspetivas pós-humanas e ciborgues. O pós-humanismo crítico (Braidotti, 2013) convida-nos a superar a obsessão pela autonomia individual, substituindo-a por uma visão relacional, distribuída e co-dependente da agência. Nessa ótica, a questão não é se a IA pode ser autora no sentido jurídico tradicional, mas como a sua participação altera a ecologia da autoria e redistribui papéis no ato criativo e educativo.
Do mesmo modo, a figura do ciborgue educativo (Haraway, 1991; Bayne, 2015) propõe que o humano e a máquina não sejam vistos como entidades separadas, mas como assemblagens híbridas que coconfiguram o ato de aprender. O professor-ciborgue ou o estudante-ciborgue não são metáforas distantes, mas realidades quotidianas: os seus processos de pensamento já estão imersos em redes sociotécnicas que reconfiguram o self.
Assim, a resolução da controvérsia não está em atribuir estatuto legal de co-autoria à IA — algo que colide com as normas vigentes — mas em reconhecer que, no plano pedagógico, epistemológico e identitário, vivemos já um regime de co-autoria expandida. Aqui, a autoria é vista como processo coletivo, rizomático e híbrido, no qual humanos e máquinas se constituem mutuamente.
Conclusão
A co-autoria humano-máquina, portanto, não é apenas uma mudança tecnológica: é uma transformação paradigmática que desafia os alicerces da educação, da epistemologia e da identidade. Mas é também uma metáfora crítica que esbarra em fronteiras normativas: a autoria continua a ser, para o Direito e para a ética científica, estritamente humana. A solução conceptual emerge da perspetiva pós-humana: compreender que não se trata de substituir autores humanos por máquinas, mas de reconhecer a autoria como processo relacional entre humanos, tecnologias e contextos. O que está em jogo não é apenas "como usamos as máquinas", mas como elas nos (re)usam para pensar connosco — e como, nesse processo, o self se reconfigura enquanto ciborgue educativo.
Referências
Bayne, S. (2015). Teacherbot: Interventions in automated teaching. Teaching in Higher Education, 20(4), 455–467. https://doi.org/10.1080/13562517.2015.1020783
Braidotti, R. (2013). The posthuman. Polity Press.
COPE. (2023). Authorship and AI tools. Committee on Publication Ethics. https://publicationethics.org/guidance/cope-position/authorship-and-ai-tools
European Commission. (2025). Guidelines on the responsible use of generative AI in research. https://research-and-innovation.ec.europa.eu/document/download/2b6cf7e5-36ac-41cb-aab5-0d32050143dc_en?filename=ec_rtd_ai-guidelines.pdf
Haraway, D. (1991). Simians, cyborgs, and women: The reinvention of nature. Routledge.
ICMJE. (2023). Defining the role of authors and contributors. International Committee of Medical Journal Editors. https://www.icmje.org/recommendations/browse/roles-and-responsibilities/defining-the-role-of-authors-and-contributors.html
Siemens, G. (2020). Connectivism: Learning theory and pedagogical practice for the digital age. Springer.
Downes, S. (2020). Recent work in connectivism. European Journal of Open, Distance and E-learning, 23(2), 112–131. https://doi.org/10.2478/eurodl-2020-0018
Turkle, S. (2011). Alone together: Why we expect more from technology and less from each other. Basic Books.
U.S. Copyright Office. (2025, April 2). Report on copyrightability and AI.
Sem comentários:
Enviar um comentário