Uma Análise a partir dos estudos ciborgues e da teoria pós-humanista aplicada à educação.
O conceito de ciborgue desenvolvido por Donna Haraway constitui uma das contribuições teóricas mais revolucionárias para a compreensão das relações entre tecnologia, identidade e poder nas sociedades contemporâneas.
O Manifesto Ciborgue: Génese e Contexto
O conceito de ciborgue surge primeiramente no seminal "A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century" (1985), onde Haraway propõe uma figura híbrida que desafia as dicotomias tradicionais da modernidade ocidental. O ciborgue não é
uma criatura de ficção científica, mas uma metáfora política e epistemológica que "é uma criatura num mundo pós-género; não tem qualquer parentesco com a bissexualidade, simbiose pré-edípica, trabalho não alienado ou outras seduções da totalidade orgânica" (Haraway, 1985, p. 150).
As Três Fronteiras Dissolvidas
Haraway identifica três fronteiras fundamentais que o ciborgue dissolve, transformando radicalmente as conceções modernas de identidade:
1. A Fronteira Humano/Animal
A primeira dissolução refere-se à tradicional separação entre humanos e animais, questionando o excepcionalismo humano que sustenta hierarquias de valor e poder. Como Haraway (1985) argumenta, "a biologia e a teoria evolutiva ao longo dos últimos dois séculos produziram organismos modernos como objetos de conhecimento, reduzindo a linha entre humanos e animais a uma ténue marca" (p. 152).
2. A Fronteira Organismo/Máquina
A segunda dissolução, particularmente relevante para os estudos educativos contemporâneos, questiona a separação entre organismos vivos e máquinas. Haraway (1985) observa que "as máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, a mente e o corpo, o auto-desenvolvente e o externamente desenhado" (p. 152).3. A Fronteira Físico/Não-Físico
A terceira dissolução refere-se à fronteira entre o físico e o não-físico, particularmente relevante na era digital onde "as nossas máquinas são perturbadoramente vivas, e nós próprios assustadoramente inertes" (Haraway, 1985, p. 152).
O Ciborgue como Estratégia Feminista
Fundamentalmente, o ciborgue constitui uma estratégia feminista de resistência às narrativas patriarcais de origem e totalidade. Haraway (1985) propõe que "o ciborgue salta a etapa da unidade original, da identificação com a natureza no sentido ocidental" (p. 151). Esta recusa da origem permite escapar às narrativas edípicas que sustentam estruturas de dominação baseadas no género, na raça e na classe.O conceito revela-se particularmente subversivo ao recusar o que Haraway denomina "a matriz da dominação" - um sistema interconectado de opressões que opera através de dicotomias hierárquicas (masculino/feminino, cultura/natureza, mente/corpo, civilizado/primitivo).
Desenvolvimentos Posteriores:
"Staying with the Trouble"Em obras posteriores, particularmente "Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene" (2016), Haraway desenvolve e complexifica o conceito ciborgue, integrando-o numa ecologia mais ampla de relações inter-espécies. O ciborgue evolui para uma compreensão mais nuançada do "becoming-with" - um processo de devir relacional que reconhece a agência distribuída entre humanos e não-humanos.Haraway (2016) introduz o conceito de "symbiogenesis" - a ideia de que "nós somos todos líquenes" (p. 31), enfatizando que a vida sempre foi colaborativa, sempre foi ciborgue. Esta perspetiva desafia não apenas o individualismo liberal, mas também as conceções antropocêntricas de agência e responsabilidade.
Implicações Epistemológicas: Saberes Situados
O conceito ciborgue está intrinsecamente ligado à teoria dos "saberes situados" (situated knowledges) de Haraway (1988). Esta perspetiva epistemológica argumenta que todo o conhecimento é corpóreo, localizado e parcial, rejeitando tanto o relativismo quanto o universalismo abstrato. Como Haraway (1988) afirma, "a visão é sempre uma questão do poder de ver - e talvez da violência implícita nas nossas práticas de visualização" (p. 585).
Os saberes situados do ciborgue permitem uma epistemologia que reconhece a natureza híbrida e relacional do conhecimento, particularmente relevante para a compreensão das tecnologias educativas contemporâneas.
Aplicações aos Estudos Educativos
Na educação, o conceito ciborgue oferece ferramentas analíticas para compreender:
A Subjectividade Educativa Híbrida
Os sujeitos educativos contemporâneos constituem-se através de redes sociotécnicas que incluem tecnologias digitais, algoritmos e inteligência artificial. Esta hibridação não é acidental, mas constitutiva da própria identidade educativa.
Agência Distribuída
A agência educativa distribui-se entre humanos, tecnologias e contextos institucionais, desafiando conceções individualistas de aprendizagem e autoria.
Resistência às Dicotomias
O ciborgue educativo resiste às dicotomias tradicionais (professor/aluno, humano/máquina, presencial/digital), propondo formas mais fluidas e relacionais de compreender os processos educativos.
Críticas e Limitações
Embora revolucionário, o conceito ciborgue não está isento de críticas. Algumas feministas materialistas argumentam que a dissolução das fronteiras pode obscurecer realidades materiais de opressão baseadas no género e na raça (Hennessy, 2000). Outras críticas apontam para o potencial elitismo do conceito, que pode não capturar adequadamente as experiências de grupos marginalizados (Sandoval, 2000).
Considerações Finais
O conceito de ciborgue de Haraway permanece como uma ferramenta analítica fundamental para compreender as transformações contemporâneas na educação e na sociedade. A sua força reside na capacidade de articular uma crítica radical às estruturas de dominação existentes, oferecendo simultaneamente uma visão de possibilidades emancipatórias através da hibridação tecnológica.
Para os estudos educativos, o ciborgue oferece não apenas uma metáfora, mas um programa de investigação que reconhece a natureza imediata tecnológica dos processos educativos, desafiando-nos a repensar fundamentalmente as nossas conceções de identidade, agência e conhecimento na era digital.
Referências
Haraway, D. (1985). A cyborg manifesto: Science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century. In Simians, cyborgs and women: The reinvention of nature (pp. 149-181). Routledge.
Haraway, D. (1988). Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3), 575-599.
Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.
Hennessy, R. (2000). Profit and pleasure: Sexual identities in late capitalism. Routledge.
Sandoval, C. (2000). Methodology of the oppressed. University of Minnesota Press.
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