sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O Ciborgue Educativo e a Ressignificação da Autoria: Uma Reflexão sobre Processos Coletivos e Relacionais


A expressão "O ciborgue educativo é a figura que resolve a controvérsia: a autoria não é propriedade, mas processo coletivo e relacional" encapsula uma transformação paradigmática fundamental na compreensão contemporânea dos processos educativos e da produção de conhecimento. Esta afirmação desafia as conceções tradicionais de autoria individual e propriedade intelectual, propondo uma visão mais fluida e colaborativa da criação de saberes no contexto educacional.

 

O conceito de ciborgue educativo emerge da intersecção entre as teorias pós-humanistas e as práticas pedagógicas mediadas por tecnologias digitais [1]. Conforme argumenta Haraway (2000), o ciborgue representa uma figura híbrida que transcende as dicotomias tradicionais entre humano e máquina, natureza e cultura, questionando as fronteiras estabelecidas da identidade e da agência [2]. No contexto educacional, esta figura assume particular relevância ao desafiar as estruturas hierárquicas e individualizadas do conhecimento.

 

Sobre a construção de identidades através da escrita em weblogs, Brazão (2008) evidencia que as tecnologias digitais facilitam formas colaborativas de produção textual e construção de significados [3]. Esta perspetiva alinha-se com as teorias da aprendizagem situada, que enfatizam a natureza social e contextual dos processos de conhecimento [4].

 

A controvérsia mencionada na expressão refere-se ao conflito entre paradigmas educacionais: de um lado, o modelo tradicional que privilegia a autoria individual e a propriedade intelectual como fundamentos da produção académica; do outro, uma abordagem emergente que reconhece a natureza intrinsecamente colaborativa e distribuída do conhecimento. O ciborgue educativo surge como mediador desta tensão, oferecendo uma terceira via que não nega a individualidade, mas a recontextualiza dentro de redes relacionais mais amplas.

 

As tecnologias digitais na educação, conforme observado por Costa e Andrade (2022), propiciam o surgimento de subjetividades ciborgues que desafiam as conceções tradicionais de aprendizagem e autoria [5]. Estas subjetividades caracterizam-se pela hibridização entre capacidades humanas e potencialidades tecnológicas, criando novos modos de ser e conhecer que transcendem as limitações individuais.

 

A dimensão relacional da autoria ciborgue manifesta-se através de práticas pedagógicas que privilegiam a colaboração, a co-criação e a partilha de conhecimentos. Martins e Viana (2019) propõem uma visão de linguagem ciborgue e coletiva que reconhece a natureza distribuída dos processos comunicativos e de significação [6]. Esta perspetiva desafia a noção romântica do autor solitário, substituindo-a por uma compreensão mais complexa e realista dos processos criativos.

 

O processo coletivo de autoria no contexto ciborgue não implica a dissolução da responsabilidade individual, mas sim a sua reconfiguração dentro de ecossistemas colaborativos. Garoian e Gaudelius (2001) conceptualizam pedagogias ciborgues que promovem formas de resistência e criatividade que emergem da intersecção entre humanos e tecnologias [7]. Estas pedagogias caracterizam-se pela flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de resposta às necessidades emergentes dos contextos educativos.

 

A resolução da controvérsia através da figura do ciborgue educativo sugere uma síntese dialética que preserva os aspetos valiosos tanto da tradição quanto da inovação. Esta síntese manifesta-se em práticas educativas que valorizam simultaneamente a expertise individual e a inteligência coletiva, a criatividade pessoal e a colaboração social, a autonomia e a interdependência.

 

Em conclusão, o ciborgue educativo representa uma figura conceitual poderosa para repensar os fundamentos da educação contemporânea. Ao propor a autoria como processo coletivo e relacional, esta perspetiva abre caminhos para práticas pedagógicas mais inclusivas, colaborativas e adaptadas às realidades do século XXI. A superação da controvérsia entre propriedade individual e criação coletiva não se dá através da negação de uma em favor da outra, mas pela construção de sínteses criativas que honram tanto a singularidade quanto a relacionalidade dos processos educativos.

Referências

[1] Haraway, D. (2000). Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In T. T. Silva (Org.), Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano (pp. 37-129). Autêntica. https://www.redalyc.org/journal/4030/403066700003/html/

 

[2] Oliveira, X. V. (2024). O Bárbaro, o Selvagem e o Ciborgue: Sobre a Possibilidade de uma Escola de Ciborgues Livres [Tese de doutoramento]. https://search.proquest.com/openview/44319df31cf230586ef58100eccbdc0f/1

 

[3] Brazão, J. P. G. (2008). Weblogs, aprendizagem e cultura da escola: Um estudo etnográfico numa sala do 1º ciclo do Ensino Básico [Tese de doutoramento]. Universidade da Madeira. https://www.academia.edu/download/62685445/Brazao_2008_Weblog_e_identidade__uma_experiencia_no_1_Ciclo20200401-79621-6c96c1.pdf

 

[4] Brazão, J. P. G. (2016). Aprendizagem situada na formação inicial de professores: Um estudo. In Didática e matemática (pp. 1-15). CIE-UMa. https://www.academia.edu/download/62816328/Brazao_P_2016_Aprendizagem_sit_na_form_ini_prof20200404-84592-17x1k3t.pdf

 

[5] Costa, J. R. S., & Andrade, V. T. A. (2022). Tecnologias digitais na educação e BNCC: Proposta do Aluno-Ciborgue-Hacker. Olhar de Professor, 25, 1-25. https://revistas.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/view/20526

 

[6] Martins, E. E. B., & Viana, R. F. (2019). Por uma visão de linguagem ciborgue e coletiva. Trabalhos em Linguística Aplicada, 58(3), 1118-1142. https://www.scielo.br/j/tla/a/QmPjMxDh9WqvMMZTcbxzfzz/

 

[7] Garoian, C. R., & Gaudelius, Y. M. (2001). Cyborg pedagogy: Performing resistance in the digital age. Studies in Art Education, 42(4), 333-347. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00393541.2001.11651708

 

 

RECONFIGURAÇÕES DO SELF NA ERA DAS MÁQUINAS PENSANTES: UMA REFLEXÃO CRÍTICA


Na confluência entre os estudos pós-humanistas, as tecnologias emergentes e a investigação educacional contemporânea, emerge um território conceptual de particular relevância: as reconfigurações do self na era das máquinas pensantes. Este blog constitui-se como um espaço de reflexão crítica e partilha académica, onde exploramos as transformações ontológicas e epistemológicas que caracterizam a nossa condição atual de coexistência com entidades artificiais dotadas de capacidades cognitivas.


Problemática Central

O conceito de self, tradicionalmente ancorado numa perspetiva antropocêntrica e individualista, encontra-se hoje em profunda reconfiguração face aos desenvolvimentos tecnológicos que caracterizam o nosso tempo. Como sugere Braidotti (2019), vivemos numa era pós-humana que exige uma reconceptualização radical das nossas categorias ontológicas fundamentais. Neste contexto, as máquinas pensantes – desde algoritmos de inteligência artificial até sistemas de aprendizagem automática – não constituem apenas instrumentos externos ao sujeito, mas antes agentes activos na constituição de novas formas de subjetividade.

A perspetiva do novo materialismo, particularmente desenvolvida por Barad (2007), oferece-nos ferramentas conceptuais fundamentais para compreender estas transformações. O conceito de "entanglement" sugere que matéria e significado se encontram inextricavelmente entrelaçados, desafiando as dicotomias tradicionais entre sujeito/objeto, humano/máquina, natural/artificial. Entanglement é um termo em inglês que se refere a um estado de emaranhamento ou entrelaçamento, podendo descrever tanto um emaranhado físico (como ramos de árvores) quanto uma situação complexa ou confusa, como um relacionamento intrincado. No contexto da física quântica, quantum entanglement é um fenômeno específico onde duas ou mais partículas ficam intrinsecamente ligadas, de tal forma que o estado de uma é instantaneamente correlacionado com o estado da outra, independentemente da distância que as separa. Esta abordagem permite-nos pensar as máquinas pensantes não como entidades separadas dos sujeitos humanos, mas como componentes de assemblagens híbridas que reconfiguram continuamente as fronteiras do que entendemos por subjetividade.


Dimensões Críticas e Desafios Éticos

A emergência das máquinas pensantes levanta questões críticas que não podem ser ignoradas numa análise séria desta problemática. Noble (2018) demonstra como os algoritmos podem perpetuar e amplificar estruturas de opressão existentes, enquanto Benjamin (2019) nos alerta para os "códigos Jim Crow" da era digital – formas subtis mas pervasivas de discriminação racial incorporadas nos sistemas tecnológicos. Estas perspetivas são fundamentais para compreendermos que as reconfigurações do self não ocorrem num vácuo político, mas sim em contextos marcados por relações de poder desiguais.

A abordagem ética proposta por Floridi et al. (2018) no framework AI4People fornece-nos princípios orientadores para pensar uma sociedade de IA que seja verdadeiramente inclusiva e justa. Contudo, é essencial que estes princípios sejam constantemente questionados e reformulados à luz das experiências vividas de comunidades marginalizadas e das perspetivas críticas dos estudos de género e diversidade.

Implicações Educacionais e Pedagógicas

No campo educacional, estas transformações assumem particular relevância. Gough (2020) propõe uma abordagem pós-humana aos estudos curriculares que reconheça a agência não-humana nos processos de aprendizagem. Richardson e Mackinnon (2023) exploram como os estudantes se tornam-ciborgue em espaços educacionais, formando assemblages estudante-tecnologia que desafiam as conceções tradicionais de aprendizagem e conhecimento.

A investigação de Zhao et al. (2023) sobre competências digitais no ensino superior sublinha a necessidade de repensar as práticas pedagógicas face à ubiquidade tecnológica. Neste contexto, torna-se fundamental desenvolver abordagens educacionais que reconheçam a natureza híbrida e distribuída dos processos cognitivos contemporâneos, conforme sugerido por Clark e Chalmers (2019) na sua teoria da mente estendida.


Metodologias de Investigação e Estudos Empíricos

A investigação destas problemáticas exige metodologias inovadoras que sejam capazes de capturar a complexidade das interações humano-máquina. A etnografia digital, como proposta por Pink et al. (2022), oferece ferramentas metodológicas valiosas para compreender como as práticas quotidianas são mediadas por tecnologias digitais e como estas mediações reconfiguram as experiências subjetivas.

Os estudos de Edwards et al. (2021) sobre a perceção de bots nas redes sociais ilustram como as fronteiras entre agência humana e artificial se tornam cada vez mais difusas na experiência quotidiana dos utilizadores. Esta difusão de fronteiras constitui um aspeto central das reconfigurações do self que procuramos compreender.

Perspetivas Futuras e Convite à Participação

Este blog constitui-se como um espaço de investigação colaborativa e reflexão crítica, inspirado nas propostas de Haraway (2016) para "fazer parentesco no Cthuluceno" – isto é, para desenvolver formas de relacionamento mais-que-humanas que sejam ecologicamente sustentáveis e socialmente justas. Seguindo as intuições de Halberstam (2020) sobre a desordem do desejo, procuramos abraçar a complexidade e a ambiguidade que caracterizam as nossas relações com as máquinas pensantes.

Convidamos investigadores, educadores, estudantes e todos os interessados nestas problemáticas a participar neste espaço de reflexão. Através da partilha de investigação empírica, reflexões teóricas e experiências práticas, procuramos contribuir para uma compreensão mais nuançada e crítica das transformações que caracterizam a nossa era.

As reconfigurações do self na era das máquinas pensantes não constituem um fenómeno distante ou abstrato, mas uma realidade quotidiana que nos desafia a repensar as nossas categorias mais fundamentais. É neste espírito de questionamento crítico e abertura ao ainda-não-pensado, inspirado nas perspetivas de Hayles (2012) sobre a tecnogénese contemporânea e de Latour (2005) sobre o social como assemblage, que vos convidamos a juntar-se a esta conversa.

 

Referências

Barad, K. (2007). Meeting the universe halfway: Quantum physics and the entanglement of matter and meaning. Duke University Press.

Benjamin, R. (2019). Race after technology: Abolitionist tools for the new Jim Code. Polity Press.

Braidotti, R. (2019). Posthuman knowledge. Polity Press.

Clark, A., & Chalmers, D. (2019). The extended mind. Analysis, 58(1), 7-19.

Edwards, C., Edwards, A., Spence, P. R., & Shelton, A. K. (2021). Is that a bot running the social media feed? Testing the differences in perceptions of communication quality for a human agent and a bot agent on Twitter. Computers in Human Behavior, 33, 372-376.

Ferrando, F. (2019). Philosophical posthumanism. Bloomsbury Academic.

Floridi, L., Cowls, J., Beltrametti, M., Chatila, R., Chazerand, P., Dignum, V., ... & Vayena, E. (2018). AI4People—an ethical framework for a good AI society: Opportunities, risks, principles, and recommendations. Minds and Machines, 28(4), 689-707.

Gough, N. (2020). Posthuman curriculum studies. In Oxford Research Encyclopedia of Education.

Halberstam, J. (2020). Wild things: The disorder of desire. Duke University Press.

Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.

Hayles, N. K. (2012). How we think: Digital media and contemporary technogenesis. University of Chicago Press.

Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network-theory. Oxford University Press.

Noble, S. U. (2018). Algorithms of oppression: How search engines reinforce racism. NYU Press.

Pink, S., Horst, H., Postill, J., Hjorth, L., Lewis, T., & Tacchi, J. (2022). Digital ethnography: Principles and practice. Sage Publications.

Richardson, G. W., & Mackinnon, T. (2023). Becoming-cyborg in educational spaces: A posthuman analysis of student-technology assemblages. Educational Philosophy and Theory, 55(3), 234-245.

Zhao, Y., Pinto Llorente, A. M., & Sánchez Gómez, M. C. (2023). Digital competence in higher education research: A systematic literature review. Computers & Education, 168, 104212.

 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O Conceito de Ciborgue em Donna Haraway


Uma Análise a partir dos estudos ciborgues e da teoria pós-humanista aplicada à educação.


O conceito de ciborgue desenvolvido por Donna Haraway constitui uma das contribuições teóricas mais revolucionárias para a compreensão das relações entre tecnologia, identidade e poder nas sociedades contemporâneas.

O Manifesto Ciborgue: Génese e Contexto

O conceito de ciborgue surge primeiramente no seminal "A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century" (1985), onde Haraway propõe uma figura híbrida que desafia as dicotomias tradicionais da modernidade ocidental. O ciborgue não é 
 uma criatura de ficção científica, mas uma metáfora política e epistemológica que "é uma criatura num mundo pós-género; não tem qualquer parentesco com a bissexualidade, simbiose pré-edípica, trabalho não alienado ou outras seduções da totalidade orgânica" (Haraway, 1985, p. 150).

As Três Fronteiras Dissolvidas

Haraway identifica três fronteiras fundamentais que o ciborgue dissolve, transformando radicalmente as conceções modernas de identidade:

1. A Fronteira Humano/Animal

A primeira dissolução refere-se à tradicional separação entre humanos e animais, questionando o excepcionalismo humano que sustenta hierarquias de valor e poder. Como Haraway (1985) argumenta, "a biologia e a teoria evolutiva ao longo dos últimos dois séculos produziram organismos modernos como objetos de conhecimento, reduzindo a linha entre humanos e animais a uma ténue marca" (p. 152).

2. A Fronteira Organismo/Máquina

A segunda dissolução, particularmente relevante para os estudos educativos contemporâneos, questiona a separação entre organismos vivos e máquinas. Haraway (1985) observa que "as máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, a mente e o corpo, o auto-desenvolvente e o externamente desenhado" (p. 152).3. A Fronteira Físico/Não-Físico

A terceira dissolução refere-se à fronteira entre o físico e o não-físico, particularmente relevante na era digital onde "as nossas máquinas são perturbadoramente vivas, e nós próprios assustadoramente inertes" (Haraway, 1985, p. 152).

O Ciborgue como Estratégia Feminista 

Fundamentalmente, o ciborgue constitui uma estratégia feminista de resistência às narrativas patriarcais de origem e totalidade. Haraway (1985) propõe que "o ciborgue salta a etapa da unidade original, da identificação com a natureza no sentido ocidental" (p. 151). Esta recusa da origem permite escapar às narrativas edípicas que sustentam estruturas de dominação baseadas no género, na raça e na classe.O conceito revela-se particularmente subversivo ao recusar o que Haraway denomina "a matriz da dominação" - um sistema interconectado de opressões que opera através de dicotomias hierárquicas (masculino/feminino, cultura/natureza, mente/corpo, civilizado/primitivo).

Desenvolvimentos Posteriores:
 "Staying with the Trouble"Em obras posteriores, particularmente "Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene" (2016), Haraway desenvolve e complexifica o conceito ciborgue, integrando-o numa ecologia mais ampla de relações inter-espécies. O ciborgue evolui para uma compreensão mais nuançada do "becoming-with" - um processo de devir relacional que reconhece a agência distribuída entre humanos e não-humanos.Haraway (2016) introduz o conceito de "symbiogenesis" - a ideia de que "nós somos todos líquenes" (p. 31), enfatizando que a vida sempre foi colaborativa, sempre foi ciborgue. Esta perspetiva desafia não apenas o individualismo liberal, mas também as conceções antropocêntricas de agência e responsabilidade.

Implicações Epistemológicas: Saberes Situados

O conceito ciborgue está intrinsecamente ligado à teoria dos "saberes situados" (situated knowledges) de Haraway (1988). Esta perspetiva epistemológica argumenta que todo o conhecimento é corpóreo, localizado e parcial, rejeitando tanto o relativismo quanto o universalismo abstrato. Como Haraway (1988) afirma, "a visão é sempre uma questão do poder de ver - e talvez da violência implícita nas nossas práticas de visualização" (p. 585).
Os saberes situados do ciborgue permitem uma epistemologia que reconhece a natureza híbrida e relacional do conhecimento, particularmente relevante para a compreensão das tecnologias educativas contemporâneas.

Aplicações aos Estudos Educativos

Na educação, o conceito ciborgue oferece ferramentas analíticas para compreender:

A Subjectividade Educativa Híbrida

Os sujeitos educativos contemporâneos constituem-se através de redes sociotécnicas que incluem tecnologias digitais, algoritmos e inteligência artificial. Esta hibridação não é acidental, mas constitutiva da própria identidade educativa.

Agência Distribuída

A agência educativa distribui-se entre humanos, tecnologias e contextos institucionais, desafiando conceções individualistas de aprendizagem e autoria.

Resistência às Dicotomias

O ciborgue educativo resiste às dicotomias tradicionais (professor/aluno, humano/máquina, presencial/digital), propondo formas mais fluidas e relacionais de compreender os processos educativos.

Críticas e Limitações

Embora revolucionário, o conceito ciborgue não está isento de críticas. Algumas feministas materialistas argumentam que a dissolução das fronteiras pode obscurecer realidades materiais de opressão baseadas no género e na raça (Hennessy, 2000). Outras críticas apontam para o potencial elitismo do conceito, que pode não capturar adequadamente as experiências de grupos marginalizados (Sandoval, 2000).

Considerações Finais

O conceito de ciborgue de Haraway permanece como uma ferramenta analítica fundamental para compreender as transformações contemporâneas na educação e na sociedade. A sua força reside na capacidade de articular uma crítica radical às estruturas de dominação existentes, oferecendo simultaneamente uma visão de possibilidades emancipatórias através da hibridação tecnológica.
Para os estudos educativos, o ciborgue oferece não apenas uma metáfora, mas um programa de investigação que reconhece a natureza imediata tecnológica dos processos educativos, desafiando-nos a repensar fundamentalmente as nossas conceções de identidade, agência e conhecimento na era digital.

Referências

Haraway, D. (1985). A cyborg manifesto: Science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century. In Simians, cyborgs and women: The reinvention of nature (pp. 149-181). Routledge.

Haraway, D. (1988). Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3), 575-599.

Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.

Hennessy, R. (2000). Profit and pleasure: Sexual identities in late capitalism. Routledge.

Sandoval, C. (2000). Methodology of the oppressed. University of Minnesota Press.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O Ciborgue Educativo em Ação


Para o conceito de Ciborgue Educativo, a  IA não é autora legal nem substitui o humano. No plano pedagógico age como parceira ontológica.


Cenário

Como funciona

Impacto no self

Co-escrita com IA

O estudante escreve com apoio de IA, mas precisa negociar entre a sua voz e a voz maquínica.

O self torna-se curador, em diálogo com múltiplas vozes.

Feedback automatizado

Sistemas corrigem e dão retorno imediato; o professor complementa.

O self aprende a interpretar e comparar perspetivas (humana vs algorítmica).

Mapas de conhecimento híbridos

IA gera conexões entre conceitos; o estudante reorganiza criticamente.

O self é cartógrafo, moldando um conhecimento rizomático.

Teacherbots em sala de aula

Bots apoiam questões técnicas e administrativas; o professor foca no debate crítico.

O self docente é expandido, redistribuindo agência pedagógica.

Identidades expandidas

IA simula narrativas e vozes diversas, permitindo empatia e experimentação.

O self torna-se plural e performativo, explorando múltiplos "eus possíveis".


Síntese crítica:  O ciborgue educativo é a figura que resolve a controvérsia: a autoria não é propriedade, mas processo coletivo e relacional.


O que acontece ao self quando as máquinas começam a pensar connosco?


Vivemos um momento histórico em que a inteligência artificial deixa de ser apenas uma ferramenta e se converte num espelho e co-autor metafórico dos nossos próprios processos de criação, reflexão e aprendizagem. Esta transição inaugura um novo regime epistemológico e identitário: o da co-autoria humano-máquina. Mais do que automatizar tarefas, a IA participa na produção de sentido, questionando as fronteiras entre sujeito e objeto, entre humano e máquina, entre autor e mediador.


Do ponto de vista pedagógico, abre-se um campo de tensão: se a aprendizagem sempre implicou mediação, agora essa mediação é partilhada com agentes não-humanos capazes de dialogar, argumentar e até propor alternativas criativas. Surge a necessidade de repensar os modelos educativos, não apenas para integrar a tecnologia, mas para compreender como esta reconfigura a agência e a autoria do sujeito aprendente (Siemens, 2020; Downes, 2020).


Do ponto de vista epistemológico, este cenário convoca os estudos ciborgues (Haraway, 1991), que há décadas problematizam os limites do humano e do tecnológico. O "ciborgue pedagógico" já não é ficção científica, mas metáfora crítica para pensar uma aprendizagem híbrida, pós-humana e interdependente, onde o conhecimento é coconstruído em redes que atravessam corpos, linguagens e algoritmos.


Do ponto de vista identitário, as implicações são profundas. O self, historicamente construído como unidade autónoma, passa a ser configurado como um processo relacional e distribuído (Turkle, 2011). Aqui, os contributos dos estudos de género e diversidade oferecem pistas fundamentais: tal como as identidades de género questionam a normatividade e a fixidez, também o self digital e co-autoral se revela plural, fluido e inacabado. A metáfora do espelho deixa de ser apenas reflexiva — torna-se dialógica, revelando múltiplos "eus possíveis" mediados por inteligências não-humanas.


O estatuto da co-autoria humano-máquina hoje


Apesar de toda esta riqueza conceptual, é importante reconhecer que, no campo jurídico, ético e científico, a noção de co-autoria humano-máquina não é hoje reconhecida.

  • Responsabilidade e agência: A Comissão Europeia estabelece, nas suas diretrizes recentes para investigação e inovação, que "os sistemas de IA não são autores nem coautores". A autoria implica agência e responsabilidade, que recaem apenas em humanos (European Commission, 2025).

  • Normas editoriais: O International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) explicita que a IA não deve ser listada como autor ou coautor, sendo apenas aceitável declarar o seu uso na metodologia ou nos agradecimentos (ICMJE, 2023).

  • Ética em publicação científica: A COPE (Committee on Publication Ethics) reforça que a responsabilidade plena é dos autores humanos, mesmo quando recorrem a IA em fases de escrita ou análise (COPE, 2023).

  • Direito de autor: O U.S. Copyright Office, no relatório de 2025, reitera que a proteção por copyright exige criatividade humana substancial. Contribuições puramente algorítmicas não geram autoria legal (U.S. Copyright Office, 2025).


Assim, embora seja instigante falar em "co-autoria" humano-máquina do ponto de vista metafórico e pedagógico, do ponto de vista normativo e jurídico trata-se de uma categoria não reconhecida. A IA permanece, oficialmente, uma ferramenta assistiva cujo uso deve ser declarado com transparência, mas que não detém nem agência, nem criatividade legalmente protegida, nem responsabilidade ética.


Para lá da controvérsia: o Pós-humano e o Ciborgue Educativo


Como resolver esta aparente contradição? Aqui entram as perspetivas pós-humanas e ciborgues. O pós-humanismo crítico (Braidotti, 2013) convida-nos a superar a obsessão pela autonomia individual, substituindo-a por uma visão relacional, distribuída e co-dependente da agência. Nessa ótica, a questão não é se a IA pode ser autora no sentido jurídico tradicional, mas como a sua participação altera a ecologia da autoria e redistribui papéis no ato criativo e educativo.


Do mesmo modo, a figura do ciborgue educativo (Haraway, 1991; Bayne, 2015) propõe que o humano e a máquina não sejam vistos como entidades separadas, mas como assemblagens híbridas que coconfiguram o ato de aprender. O professor-ciborgue ou o estudante-ciborgue não são metáforas distantes, mas realidades quotidianas: os seus processos de pensamento já estão imersos em redes sociotécnicas que reconfiguram o self.


Assim, a resolução da controvérsia não está em atribuir estatuto legal de co-autoria à IA — algo que colide com as normas vigentes — mas em reconhecer que, no plano pedagógico, epistemológico e identitário, vivemos já um regime de co-autoria expandida. Aqui, a autoria é vista como processo coletivo, rizomático e híbrido, no qual humanos e máquinas se constituem mutuamente.


Conclusão


A co-autoria humano-máquina, portanto, não é apenas uma mudança tecnológica: é uma transformação paradigmática que desafia os alicerces da educação, da epistemologia e da identidade. Mas é também uma metáfora crítica que esbarra em fronteiras normativas: a autoria continua a ser, para o Direito e para a ética científica, estritamente humana. A solução conceptual emerge da perspetiva pós-humana: compreender que não se trata de substituir autores humanos por máquinas, mas de reconhecer a autoria como processo relacional entre humanos, tecnologias e contextos. O que está em jogo não é apenas "como usamos as máquinas", mas como elas nos (re)usam para pensar connosco — e como, nesse processo, o self se reconfigura enquanto ciborgue educativo.


Referências

  • Bayne, S. (2015). Teacherbot: Interventions in automated teaching. Teaching in Higher Education, 20(4), 455–467. https://doi.org/10.1080/13562517.2015.1020783

  • Braidotti, R. (2013). The posthuman. Polity Press.

  • COPE. (2023). Authorship and AI tools. Committee on Publication Ethics. https://publicationethics.org/guidance/cope-position/authorship-and-ai-tools

  • European Commission. (2025). Guidelines on the responsible use of generative AI in research. https://research-and-innovation.ec.europa.eu/document/download/2b6cf7e5-36ac-41cb-aab5-0d32050143dc_en?filename=ec_rtd_ai-guidelines.pdf

  • Haraway, D. (1991). Simians, cyborgs, and women: The reinvention of nature. Routledge.

  • ICMJE. (2023). Defining the role of authors and contributors. International Committee of Medical Journal Editors. https://www.icmje.org/recommendations/browse/roles-and-responsibilities/defining-the-role-of-authors-and-contributors.html

  • Siemens, G. (2020). Connectivism: Learning theory and pedagogical practice for the digital age. Springer.

  • Downes, S. (2020). Recent work in connectivism. European Journal of Open, Distance and E-learning, 23(2), 112–131. https://doi.org/10.2478/eurodl-2020-0018

  • Turkle, S. (2011). Alone together: Why we expect more from technology and less from each other. Basic Books.

  • U.S. Copyright Office. (2025, April 2). Report on copyrightability and AI.